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Plano de saúde e casa própria, Thiago Bortolozzo e Thiago Honório



         
        Uma das dificuldades de se descrever a exposição “Plano de Saúde e Casa Própria”, de Thiago Bortolozzo e Thiago Honório, é o caráter ambivalente dos trabalhos. Por um lado, eles se seguram sozinhos, são singulares e articulam sentidos na relação interna entre os elementos que os compõem. Mas estes objetos abandonam a introspecção, e tentam atuar também no espaço comum, apresentando-se como continuidade dele. Para isso, estabelecem correspondências uns com os outros e tentam compor o espaço, como se dessem nova feição à galeria.

       O modo como a exposição é montada reforça o diálogo entre as obras. O caráter individual de cada uma é abrandado. Elas deixam de agir dentro dos seus limites físicos e procuram se comunicar com o espaço que as permeia. Sugerem relações mais evidentes com o lugar e procuram atribuir sentidos a ele. As fotos, por exemplo, têm individualidade, mas parecem comentar e atribuir sentido às funções da galeria. Diante delas temos a impressão de que entramos num sugestivo show room de imobiliária, com prédios inabitados e desequilibrados.
 
        Aliás, tão desequilibrados, quanto o vínculo entre as marcas de bastão a óleo preto e as folhas de prata que se encrespam no interior destes traços. Num desenho maior, uma larga mancha negra, dividida em dois papéis justapostos, nos traz a sensação de um peso maior do que as paredes disponíveis da sala de exposição pode aguentar. Aqui, a posição destes trabalhos no espaço importa. Embora cada obra fale por si mesma, elas se relacionam, e tentam estabelecer uma nova relação com o espaço da galeria recém inaugurada.

        Os artistas pretendem abrir o espaço despertando tudo. Incomoda-lhes, particularmente, uma serenidade adequada dos estabelecimentos comerciais de arte. Sua cara de vitrine, de gôndola de supermercado. Já nos trabalhos individuais, estes artistas têm dificuldade de se acomodar a situações estáveis. Malandros, não gostam de bater cartão, ter horário de almoço e muito menos obrigações fixas. Só conseguem situações harmônicas e de conforto no olho do furacão. Tentam estabelecer uma ordenação dos elementos do seu trabalho quando tudo está prestes a desabar.

Equilíbrios precários

        Talvez por isso, a obra destes artistas pareça ser feita de equilíbrios precários. Os prédios aplainados das fotos e as formas pesadas e massudas dos desenhos custam a ficar de pé. Seja pela falta de solidez em um, ou pelo excesso de massa no outro. Nos seus trabalhos mais espaciais, os artistas buscam deslocar os pontos de apoio fixo. A série Vital Brasil (2001), de Bortolozzo, por vezes empilhava caixotes de maderite no canto de uma sala, como se aquela frágil e precária estrutura escorasse o cômodo. Os apoios era frágeis, e pareciam retirar a solidez do lugar. Tínhamos a impressão de que a sala se mantinha de pé a duras penas.

        As fotos desta exposição também tratam destes apoios delicados. Fotografando fachadas de edifícios, os artistas tentam aplainar tudo. As imagens aparecem rasas, sem solidez. O arranha-céu inteiriço perde as quinas e qualquer sinal de profundidade. No máximo se intercala faces da mesma construção, justapondo superfícies. O corte nas fotos, visto de cima para baixo, elimina a presença da rua, dos transeuntes e de qualquer referência à horizontalidade, ao chão. Temos a impressão de que aquelas faixas de concretos se sustentam em um apoio precário. Assim como os cômodos onde se instalavam as esculturas chamadas Vital Brasil, aqui temos a impressão de uma sustentação bamba. O olhar do fotográfico desvincula a verticalidade dos edifícios de uma espacialidade convencional. Os planos parecem prestes a cair de maneira fragorosa, no entanto uma série de apoios provisórios adia o risco de desabamento.

        Os desenhos também contam com um equilíbrio precário entre as formas. No entanto, não é a falta de apoio e nem o aspecto envelhecido e alheio das superfícies que conduzem a uma relação desequilibrada com os elementos. Aqui as formas são pesadas, massudas, amolecidas e desajeitadas. Não têm o aspecto retilíneo de paredes. São corpos porosos, que parecem se desmanchar. No entanto, querem se manter de pé, como bêbados teimosos. Em geral estão acompanhados, e se escoram em outras formas, criando relações instáveis. Se nas fotos os risco das coisas desabarem leva os artistas a construírem um olhar onde as superfícies (que parecem se encostar suavemente umas sobre as outras em busca de um ponto de equilíbrio), aqui a tonteira se dá pelo excesso de vigor das formas. Uma parece fazer força sobre a outra. Nenhuma parte do trabalho abre mão de suas características, nem quer servir de escora.

Harmonia sem repouso

        Antes, o traço de Honório equilibrava linhas finas e suaves e formas massudas. Umas se apoiavam nas outras, buscando um ponto de equilíbrio. As linhas evitavam se esticar muito, para não se arrebentarem, já as faixas densas e pesadas tentavam se manter apegadas às linhas mais delicadas, pois não queriam se tornar uma mancha horizontal.

        Nos melhores trabalhos, aquelas manchas verticais evitavam esticar as linhas finas, o que sugeriria uma queda interrompida. Como o traço era suave, o artista evitava que uma forma tencionasse a outra e buscava uma relação menos violenta. Os corpos deslocavam em torno de um eixo, como se dançassem. Iam de um lado para o outro, com graça e delicadeza. Tudo indicava que se uma forma forçasse a outra, este equilíbrio se romperia, mas graças a este movimento eles se mantinham de pé.

        A harmonia não era encontrada com os elementos em repouso, pelo contrário, eles se entendiam em grande atividade. As formas desenhadas a quatro mãos agora se equilibram a duras penas. Os artistas não se interessam em repousar os seus elementos. O tipo de harmonização que procuram se baseia nestas situações pouco acomodadas, com um quê de provisórias, como se tudo estivesse para se ajeitar.

        Talvez por isso os artistas se sintam desconfortáveis num espaço tão acolhedor e sereno como a galeria de arte. Tudo parece ideal demais. Os artistas talvez prefiram o ambiente promíscuo das grandes cidades brasileiras. Os elementos deste trabalho, de certo modo, se alimentam de uma imprevisibilidade, da necessidade de se improvisar diante do risco. Eles não estão acostumados a se recostar com conforto em um lugar.

        Como querem extrapolar estas relações pouco estáveis, os artistas tentam desmentir, a todo tempo, a indiferença do espectador em relação ao espaço expositivo. Para isso, logo na entrada, instalam um grupo uniforme de chapas de ferro que veda a fachada de vidro da galeria. As folhas metálicas restringem a entrada de sol no estabelecimento e impedem o seu contato com o espaço externo. Num primeiro momento, temos a impressão de que o prédio foi abandonado, como em algumas fotos da mostra, e tapado por uma sólida placa de ferro. No entanto, o arranjo é mais interessante. Os artistas, na verdade, usam as folhas para deslocar o espaço da galeria.

        A entrada deixa de se identificar com a frente vítrea do espaço. É deslocada para a lateral, em uma fresta entre as chapas e a porta do estabelecimento. Para entrarmos, passamos por debaixo da placa de ferro, que se inclina na nossa direção. Apesar das folhas se apoiarem com leveza, aqui a sensação de desequilíbrio é iminente. Pois, inclusive, quem passa por debaixo das folhas de metal, vê a sua face lisa. Para todos os efeitos, passamos por debaixo de uma pesada e grande placa de ferro. Embora as linhas de solda apareçam, tem-se a impressão de que aquele plano pesado se equilibra sobre nós e pode cair a qualquer momento.

        É importante ressaltar o lado que os artistas escolhem para inserir a placa no espaço. Preferem colocar a face lisa voltada para o interior da galeria, e a face soldada, onde aparecem as emendas de ferro, voltada para fora. Esta é a parte de fora do ferro, o que recrudesce nossa impressão de deslocamento. Temos a impressão de que a galeria colocou seus fundos para frente, ressaltando o isolamento do prédio com a rua.

Plano de saúde de casa própria

        Esta superfície é um plano de saúde. Através dela, os artistas conseguem trazer para o espaço expositivo o risco iminente que parece constituir os outros trabalhos. Acreditam que este plano áspero reaviva o espaço, quebrando a sua monotonia, atribuindo-lhe saúde. A apropriação da casa pelos dois desestabiliza aquele lugar apropriado para receber obras, emprestando a instabilidade dos trabalhos para o local onde eles se inscrevem.

        Mesmo que os dois termos que dão título à exposição não sejam tomados em seu sentido mais usual, é curioso como eles parecem dialogar com este uso. No Brasil a casa própria continua sendo uma reivindicação  social e um sonho de muitas famílias. Trata-se de um testemunho de um país em que a universalização dos direitos elementares ainda não é regra. Muitas vezes o acesso a estes equipamentos de bem estar é conquistado por força da exceção. Os planos de saúde privados, por exemplo, aparecem como forma particular de colonização de uma região com cobertura insuficiente do sistema público.

        Embora a mostra assinada e concebida pelos dois artistas não trate das mazelas do país, é curioso como transformam este modo improvisado e matreiro de driblar as dificuldades em forma plástica. Tratam com situações instáveis e incertas. Sem elogiar a vivência do improviso, eles parecem ver com bons olhos esta capacidade plástica de se reverter as adversidades. E no fim, depois da tempestade, estes artistas talvez consigam fazer da marquise do bar uma bela morada.


—  Tiago Mesquita
Texto do catálogo da exposição “Plano de saúde e casa própria”. São Paulo: Galeria Rosa Barbosa, outubro de 2003.







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