Saltando de banda / Thiago Honório
Com uma agenda de exposições proposta e viabilizada pelos próprios artistas que nela se apresentam, a Galeria 10,20 X 3,60 é um retângulo recortado rente à calçada, separado desta apenas por uma porta de vidro que se abre a um eclético e animado entorno urbano, longe das áreas que concentram a maior parte das galerias e equipamentos culturais em São Paulo. Sugere, assim, tanto o aparecimento frágil e pitoresco do espaço de arte para uma situação urbana que tende a dissolvê-lo em sua própria dinâmica, feita do pequeno comércio de varejo, dos serviços e de uma malha viária conectada crucialmente à vida econômica da cidade, como a possibilidade inversa, de uma maior permeabilidade dos trabalhos a esse rico ambiente externo, desembaraçados de maiores mediações institucionais e de fato mais diretamente expostos ao que se passa na rua.
É a inserção ambígua desse espaço na região de Santa Cecília – oscilando entre uma escala familiar, que tende a assimilá-lo ao cotidiano do bairro, como uma singularidade a mais no colorido local, e o prolongamento tão franco e natural para a rua, para a perspectiva da cidade - que estimula de maneira vital o trabalho de Thiago Honório. Não que o projeto da 10,20 X 3,60 esteja em questão para o artista. Ao interrogar a escala pública de um espaço que se propõe a acolher a produção artística de maneira mais informal e direta, a contrapelo do circuito de prestígio, a obra defronta situação cultural mais ampla, que diz respeito ao enfraquecimento da idéia de cidade na esfera de interesses do trabalho de arte, ao desaparecimento, no horizonte da arte contemporânea, da possibilidade de o trabalho perceber-se em escala, em relação à cidade.
O tremendo esforço mecânico que se consome na sustentação de duas pesadas colunas de concreto armado num recinto de estrutura precária e de dimensões exíguas, evidenciando a incongruência da relação entre dois elementos tão desiguais, tal como ocorre em “Saltando de banda”, é um indício eloqüente dessa situação. A ela decerto corresponde, no pólo oposto, e um tanto paradoxalmente, a absorção permissiva e sem resistência das manifestações da arte na cidade contemporânea, e a universalização de uma modalidade de ocupação do espaço que apequena a escala dos trabalhos, desenraíza-os e os leva a abordar a cidade como uma constelação de pequenos nichos privados e incomunicáveis. Numa visada mais funda, o trabalho depara-se com a própria desmaterialização contemporânea da noção de espaço. Não por acaso, nele peso e gravidade são valores centrais.
A decisão de Thiago Honório, de ocupar a Galeria 10,20 X 3,60 não com a numerosa produção em desenho a que tem se dedicado nos últimos anos, mas com uma operação de engenharia envolvendo centralmente, num jogo de forças e resistências, a estabilidade do prédio da 10,20 X 3,60, já constitui, portanto, uma tomada de posição. A ação, de caráter monumental, extremada em face das dimensões relativamente modestas do local, situa de imediato a obra numa escala que ultrapassa o retângulo da galeria, num gesto forte de extroversão. Trata-se, para o artista, de garantir a presença do trabalho da porta para fora, de fazê-lo comunicar-se com o fluxo da vida material que corre na rua, o que não significa que vá intervir no entorno urbano, mas que esteja empenhado em mudar drasticamente padrões habituais de escala. É isso que o levou a comprimir o interior da galeria, de modo que a extraordinária reserva de energia represada naquela situação empurra, necessariamente, o foco do trabalho para o exterior, para o sistema de relações que a ação mobiliza.
As duas estacas de concreto armado instaladas no interior da galeria pesam 500 quilos cada, têm 4 m de altura (contra um pé direito de cerca de 4,30 m) e 28 cm de diâmetro, e são sustentadas sem qualquer fixação no piso, por tirantes presos a uma pilastra de concreto, no alto da única parede que de fato pertence à estrutura do edifício - as outras duas são painéis de compensado de madeira, completando o retângulo o acesso envidraçado da 10,20 X 3,60. As estacas, pendendo fora da posição vertical, alçando-se de um incerto ponto de apoio no chão e tendo seu peso suportado pelo único componente “sólido” da construção protagonizam, de modo veemente, a relação desconfortável, desproporcional, entre o trabalho e a galeria, mas também o diálogo exasperado que este mantém com a cidade.
Considerando o desempenho de força e resistência à gravidade que a obra concentra numa área tão diminuta do mapa da cidade, parece faltar consistência material e enervação àquilo que se descortina para além dela como espaço público. Em vez de acolher o pressuposto tácito da singularidade e excepcionalidade daquela pequena galeria no bairro de Santa Cecília, e a escala intimista que ela parece sinalizar, em vez, afinal, de percebê-la a partir de um ponto de vista interno, o trabalho afirma sua própria exterioridade: assume-se quase sem mediações formais como um fato técnico de impacto, posto para muito além de seus limites físicos – linguagem áspera e impessoal – a única capaz de tocar nos interesses que mobilizam a infra-estrutura da cidade.
Isso não significa que o trabalho se esgote na literalidade de sua operação, em sua presença física acabrunhante. O desafio, para o observador, é precisamente detectar na economia de procedimentos de “Saltando de banda” uma narrativa etérea, de solidão e nonsense, como se a obra fosse um impossível ballet metafísico, em que colunas pálidas e corpulentas, a que subitamente faltasse o chão, se imobilizassem num vazio lunar, contidas apenas pelo ar. É preciso notar que as duas estacas, destituídas de sua função estrutural de sustentação, ignoram a premissa da verticalidade do espaço e a função estática das paredes; estirando ao limite a possibilidade de contenção da galeria, forçam o observador a circundá-las em movimentos sinuosos e envolventes, recusando-lhe a possibilidade da distância, ou qualquer visão perspectiva. Rompe-se, assim, o entendimento tácito das paredes como suportes, ou como lugares passivos de uma pressuposta “exibicionalidade” dos trabalhos. A obra reclama uma relação corporal com o espaço.
— Sônia Salzstein,
São Paulo: 10,20 X 3,60, fevereiro de 2003.