Exposição
Não obstante a aparência suntuosa dos seus objetos, nos quais intervém uma boa dose de eloqüência e carga retórica, o que Exposição evidencia, de imediato, não é o apelo tão singular da presença de cada um deles. Ao contrário, a quantidade de associações literárias e a máscara alegórica que esses objetos declaram em alto e bom som e que impõem de modo tão saliente à visão são, de fato, o que denuncia neles uma marca clamorosa de ausência e que os transporta sempre para alhures. Quando essa ausência se realiza plenamente, sem deixar rastro – nada a ser decifrado, nenhuma interioridade a ser adivinhada –, resta a gravidade e a pressão física literais das coisas que afinal os constituem.
Considerada dessa maneira, a exposição de Thiago Honório é um sólido geométrico de linhas afiadas, em permanente desencontro com o espaço cúbico da galeria, suas múltiplas arestas sendo nódulos de tensão, pontos de destinação e desenvolvimento dessas linhas que colocam em dependência recíproca tudo o que ali está; nenhum dos objetos, a despeito das narrativas que ostentam, com referências evidentes à sexualidade, poderia desprender-se desse sólido e reclamar fóro próprio ou a excepcionalidade de um ego sem prejuízo para a austeridade –, que é composicional, calculada – do conjunto. A força do trabalho reside em que se permite um tom muito próximo do kitsch, no uso pródigo e solene que faz das alusões literárias, como também nos meandros caprichosos da crítica psicológica que insinua freqüentar, apenas para revelar mais franca e rudemente sua exterioridade, ou a coincidência entre interior e exterior de que é feito. Também por isso é ausência: porque preenche de possíveis o espaço, sem conceder a tipificações ou a exercícios de variação da forma.
Para dizer o mesmo, mas agora descrevendo a situação pelo seu negativo, ou seja, pela presença incontornável que o trabalho afirma (o que de fato sempre nos dará uma compreensão mais verdadeira das coisas): considerada dessa maneira, a exposição, longe de dizer respeito às profundezas de um inconsciente, almeja a tábula rasa, é um inventário de acontecimentos físicos produzidos por uma complexidade de forças pulsionais que não se logram sublimar totalmente, e que por isso permanecem a meio passo entre o esplendor e a corrupção dolorosa de sua vitalidade.
Uma boa parte das obras apresentadas é designada por nomes próprios. Por certo, não se trata de homenagear artistas, poetas e escritores célebres, muito menos servir-se deles como metáforas. Chamar aqueles objetos de Bataille, Leiris, Buñuel os torna um pouco mais coisas, sublinha-lhes essa opacidade de coisas cuja existência só pode se realizar em outras. Entretanto, os nomes não são indiferentes. Provavelmente o artista os escolheu por serem de autores que se defrontaram com a dimensão física aterradora que os objetos podem ter quando resistentes a uma predicação ou quando destituídos da idéia de finalidade; autores que se aventuraram para fora do mundo dos conceitos e das generalizações, em busca do tipo de pensamento desgarrado que seria um pensamento da matéria. Por isso, ao reduzirem-se aos nomes (e tal é o caso da própria exposição), os objetos exprimem algo daquela aventura empurrada pelo sentimento de impossibilidade que está presente na obra dos dois escritores e do cineasta; os objetos ganham em concretude ao se submeterem inteiramente ao nome de outrem, ao se deixarem aderir a este como espelhos que recolhem tudo do ambiente sem nada trocarem com ele. Como se pode esperar, um dos temas centrais de Exposição é a visão.
Se a visão – não apenas na história da arte, como também na história da cultura – tem quase o estatuto de um conceito, e um conceito central no pensamento ocidental (a tradição fala mesmo num “olho da mente”, e da representação como apropriação equivalente do mundo – o que é uma façanha da visão, naturalmente), a figura do transe libertador de uma revelação profana não raro apareceu àqueles autores ao preço da violência inefável que desferiram à visão, quando não diretamente ao olho. Dessa maneira, antes dos objetos, em Exposição vem à tona o resíduo confuso que retemos de todos eles. É como se o artista tivesse desejado criar uma sensação específica que correspondesse à atividade energética do nosso olho, – olho que as obras não perdem a chance de aguilhoar –, mais isso do que deixar-nos cumular pela visão, esse campo já decifrado, cuja “causa” nos habituamos a situar na universalidade do espírito, longe, em todo caso, das vicissitutes do olho orgânico. O olho, na forma como aparece no trabalho de Thiago Honório, é então o vértice de uma experiência física e mental que nem sempre se deixa traduzir no terreno plano da representação; a visão, por sua vez, naturalizada pelo uso, teria de retroceder à carne do olho, reconquistar a curvatura deste para capturar a dimensão simultânea e envolvente daqueles acontecimentos físicos.
É assim que Exposição dispõe diante de nós um mundo de reflexos sem origem, um mormaço quente que ilumina os objetos de modo inclemente sem conseguir desatá-los uns dos outros. Esses objetos valem, então, pelo que não são, pela intensidade da negação de que são capazes, e é por isso que há uma incongruência mortificante entre a força de suas alegorias – alegorias que são, poder-se-ia dizer, presenças físicas no trabalho, porquanto o conteúdo delas é também sua forma – e o tratamento meticulosamente neutro dado ao espaço em que foram confinados. De início, aliás, fica-se sem saber muito bem se o trabalho é o que está dentro ou o que está fora.
A instalação das obras alude vagamente a uma decoração museográfica, pois as vitrinas e suportes de fixação em que os objetos são apresentados se parecem com mostruários ou com o tipo de mobiliário destinado, nos museus de arte ou histórico-científicos, a exibir objetos de valor. Cria-se um jogo de reverberações recíprocas entre o que está vivo e o que está morto, entre o que acontece de um lado e de outro das superfícies nessa propagação contínua de imagens que Exposição produz; pergunta-se, enfim, sobre quem é que olha e quem está sendo olhado.
No entanto, as vitrinas e suportes são, por assim dizer, outros tantos elementos compositivos no cálculo da exposição. Presos a eles, os objetos vivem sua vida própria e incomunicável, são o espetáculo de seu nervo vital declarado em primeira instância apenas a si mesmos. Se o mobiliário que os retém sugere à primeira vista uma mediação, logo nos damos conta de que são os objetos mesmos que sustentam essa mediação; eles incorporam-na ativamente à sua lógica mais interna. Dessa maneira, só se pode ter acesso aos objetos através dos enquadramentos sinistros dessas vitrinas e dos suportes ritualizados de madeira com placas de ouro, que paradoxalmente conferem impressionante materialidade e pujança àquilo que, em afetação cerimonial, deveriam, como de praxe, catalogar e separar da realidade. A respeito desse mobiliário, nunca é demais lembrar que historicamente surgiu como recurso de conforto e bem-estar da visão, recurso por meio do qual a cultura podia elidir o presente, reduzindo-o celeremente a uma ordem abstrata da visão. Mas eis que esses objetos retornam, imperturbáveis e incômodos; o mobiliário, deformado por eles, já não pode aliená-los do presente que eles denunciam e sonegar-lhes a possibilidade de uma morte duradoura.
Esse arranjo parece ter nascido do sentimento de que uma exposição não deixa de ser, no fim das contas, uma morte e que, sendo assim, diante dela é preciso um trabalho de rememoração e de compreensão, rememoração e compreensão que entretanto se dão como algo de originário, que se põe sempre pela primeira vez. Implicam uma luta encarniçada com materiais corrompidos pela domesticação dos sentidos e pela pacificação da visão, por todas as explicações e justificações que a visão entretece no seu caminho, e que por isso apenas podem evocar a vida a partir desse outro lugar. Daí o caráter grave que o termo Exposição adquire nesse caso – ele se refere sem rodeios a um procedimento demonstrativo, central ao trabalho. Isto é, Exposição não faz mais do que descrever o ato de “exibir”, que ali se pratica como que pornograficamente, e que talvez não signifique uma generosidade com a qual se acena à visão, um passaporte seguro para a realidade dos sentidos, mas, ao contrário, o administrar de um placebo para a cura de uma doença que não existe.
— Sônia Salzstein,
São Paulo: Galeria Virgilio, novembro de 2007.