Servo, 2010-2012
Composto por um crânio de cervo dissecado, aparafusado numa fina haste de latão de 20 cm, que emerge, num ponto de equilíbrio delicado, de um disco com 36 cm de diâmetro e 200 mm de espessura, do mesmo material, altamente polido e reflexivo. Trata-se de trabalho construído para ser disposto no chão, sem bases ou anteparos, e que tem, aproximadamente, meio metro de altura.
As dimensões do disco dizem respeito a um estiramento de limites, uma vez que precisei definir o diâmetro em 36 cm para que o reflexo dessa imagem surgisse no interior da superfície espelhada do disco de latão. Ademais, o crânio dissecado deveria ser, ele mesmo, afixado no centro do disco, evitando deslocamentos que pudessem adicionar ao trabalho uma indesejável dimensão compositiva extra. Assim, a caixa óssea seccionada do cervo, no caso desse trabalho intitulado Servo, foi posicionada de modo a ter a mandíbula e a arcada dentária de sua estrutura anatômica – o “céu da boca” – refletidas sobre a superfície o disco. Desejei que o único osso móvel da cabeça – a mandíbula –, portando os dentes em forma de ferradura, refletisse com nitidez sobre a superfície de latão polida. Planejei, igualmente, que essa imagem reflexiva e dourada sobre o latão pudesse ser vista de cima, propondo um outro ponto de vista em relação ao surgimento da imagem refletida, neste caso, quase rente ao chão.
O disco de latão foi submetido a um corte realizado a laser para que as suas laterais comportassem uma precisão máxima, evitando rebarbas. Além disso, foi usinado e extremamente polido para proporcionar um espelhamento específico, dourado, solicitado pelo
trabalho. A estrutura de Servo é densa, pesa cerca de 40 quilos, considerando que a chapa de latão com a qual o disco foi construído tem 200 mm de espessura.
Há, na alegoria deste trabalho, o desejo em lidar com o excesso, o cafona, o mau gosto, o ridículo, o ultraje, o transbordamento. Daí a escolha pela estridência da coloração dourada, seu polimento e brilho latentes, uma vez que a superfície foi submetida a uma aplicação de verniz brilhante para evitar que o material se oxidasse.
Na imagem duplicada da arcada óssea dentária do crânio dissecado há algo como um autodeboche à toda prova, um riso de sua condição de autoinsuficiência. No momento em que estava envolvido com a produção de Servo, havia entrado em contato com uma obra clássica do cinema mudo, The man who laughs (O homem que ri), de 1928, do alemão Paul Leni (1885-1929), importante diretor de cinema do expressionismo alemão, cujo filme mudo apresenta cenários que recriam Londres no século XVII. A personagem dessa película acabou influenciando a criação do Coringa, o grande vilão das histórias em quadrinhos, arqui-inimigo do Batman.
O coringa, como se sabe, é o bobo da corte, o clown, o palhaço, o joker. Trata-se da figura que alude ironicamente à sua própria insuficiência – o riso como insuficiência humana –, uma espécie de antítese social. Esse bobo serve à corte e é representado nas cartas do baralho como o coringa, aquele que pode alterar o jogo decisivamente e, como sabemos, que também parodiava atitudes e gestos corporais e faciais de toda a corte. Contava extravagantes histórias que, por meio de suas atitudes dúbias, artimanhas, meias verdades, conduziam a diferentes direções, variadas interpretações, alternados estados de ânimo, que aceitam sentidos contrários. Essa figura controversa traz consigo, mediadas pelo riso, as alegorias subjetivas das pantomimas, do grotesco, do hilário.
De acordo com alguns autores, Bob Kane (1915-1988), Bill Finger (1914-1974) e Jerry Robinson (1922), criadores do Batman, personagem da história em quadrinhos homônima, inventaram a personagem Coringa inspirados noutro palhaço, criado originalmente por Victor Hugo (1802-1865) para a novela L’homme qui rit (O homem que ri), publicada em 1869 e que inspirou posteriormente o filme Das cabinet des Dr. Caligari (O gabinete do Dr. Caligari), de 1919, outro clássico do cinema mudo expressionista alemão, protagonizado por Conrad Veigt – o intérprete do assassino sonâmbulo. A história de L’homme qui rit começa com o assassinato, a mando do rei, do lorde Clancharlie, que havia descoberto que seu filho Gwynplaine fora vendido pelo monarca a um grupo de ciganos conhecidos como “Comprachicos”, que desfiguravam crianças para se tornarem aberrações de circo. A operação feita pelos “Comprachicos” em Gwynplaine deu ao garoto um eterno sorriso, desfigurando para sempre sua face.
Desde os primeiros estudos que me levaram à realização de Servo pensei em privilegiar a abertura da mandíbula do crânio dissecado, escancarando, pelo reflexo da imagem na superfície polida de latão, um “riso” estático. Acredito que a ênfase nesse “riso” estático sugerido pela mandíbula aberta do cervo e pela imagem por ela revelada – por que não dizer, sugerida, criada –, a partir do reflexo na superfície dourada altamente brilhante e reflexiva, possa ser comparado ao “sorriso” dessa personagem de L’homme qui rit, Gwynplaine, que teve o rosto permanentemente deformado por um sorriso.
A mesma sonoridade das palavras cervo e servo, esta que intitula o trabalho, chama a atenção, de um lado, pela domesticação identificada no posicionamento do objeto, algo como uma submissão ao espectador, e, de outro, à condição dissecada do crânio do cervo. Alguns dicionários, como o Houaiss, e o Vocabulário da Língua Portuguesa consideram estes dois vocábulos homófonos, preconizando a pronúncia do e da primeira sílaba de cervo e servo como vogal aberta, assim como há outros, como o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa e o Grande Dicionário Língua Portuguesa, que dizem que palavra servo pronuncia-se com o e aberto, como o e de pé, e a palavra cervo com o e fechado, como em medo. Logo, as palavras cervo e servo são homônimas homófonas e parônimas*.
Gostaria, pela sonoridade, de chamar a atenção não para a ressemantização do termo, mas para sua dubiedade que pode, ela também, ser problematizada pelo eco reflexivo da imagem da arcada óssea dissecada do cervo de Servo refletida na superfície dourada polida de latão.
Thiago Honório, julho de 2011.
*
Homo (do grego) significa “igual”. Palavras homônimas homófonas têm som igual, escrita diferente e significados diferentes, como é o caso de conserto e concerto. Cerrar significa “fechar”; serrar significa “cortar”. Palavras parônimas são aquelas parecidas na forma, entretanto, diferentes quanto ao significado. Por exemplo: acento ou assento; acento = intensidade, sinal gráfico; assento = lugar onde se senta. Logo, palavras homônimas homófonas são palavras com a mesma pronúncia, com alguma diferença gráfica e com diferentes significados; e parônimas são palavras parecidas na forma, com diferentes significados.
Ficha técnica
Servo, 2010-2012
Disco de latão polido, haste de metal e crânio dissecado de cervo com galha
foto: Edouard Fraipont
Exposições
Corte, Galeria Laura Marsiaj, RJ, 2011