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* E-mail do artista ao autor. Fevereiro de 2010. 
As aspas deste texto transcrevem esta correspondência.

** O verbo montar é aqui tomado em tripla significação: aquela utilizada para designar o arranjo de obras no espaço, a correspondente à edição cinematográfica e à do jargão que designa a transformação de uma pessoa pelo uso de roupas, perucas e maquiagem.

*** Estátua de roca é um tipo de imagem sacra levada em procissão e vestida com trajes de tecido.




























Olhar desperto




       Na divisão de trabalho do mundo da arte, corresponde ao curador a tarefa de formular um pensamento e despertar significados sobre a obra de arte com a presença efetiva do objeto. Daí que seja cada vez mais evidente a formulação de que, se nem todo crítico é curador, talvez não se possa, plenamente, dizer o contrário. No trabalho do curador deve residir um pensamento crítico. Esta dicotomia poderia ser levada adiante na separação entre os curadores que desenvolvem e cuidam de coleções e aqueles que fazem exposições (os exhibition makers, segundo o jargão anglo-saxônico). Em seu estado ativo, esta prática transcende a check list da exposição (conjugada no passado ou no futuro) e acende as relações semântico-formais que o corpo-obra deflagra no espaço, na companhia de outros, no contínuo da arquitetura, nos passos do olhar, enfim, na montagem.

       
Thiago Honório é um partidário reinventor desta atividade, artista-curador-montador de sua obra. Seus trabalhos são, em última instância, montagens. Que, no espaço, remontam uns aos outros. Daí que tenha escolhido batizar de “Corte” (as aspas fazem parte do título proposto pelo artista) sua mais recente exposição. O título alude tanto às quinas das superfícies afiadas de suas obras-montagens quanto à unidade mínima do princípio de montagem, o corte, o espaço de suspensão entre uma cena e outra que, no cinema, confere um andamento na narrativa – aquilo a que Eisenstein chama de colisão, a cola invisível que dá forma e sentido ao que vemos. 

        Que se descreva este processo de montagem sem que ele esteja finalizado é apenas mais um sintoma que alimenta a reflexão inicial deste texto. Quando as visitamos, as obras-montagens estavam todas, nas palavras do artista-fisiologista, nas “mesas de dissecação” do estúdio*. Suas partes não estavam, por assim dizer, montadas**. Examinemos então, primeiro, os estudos que as precedem. São desenhos, anotações executadas com lápis e tinta sobre papel, ao mesmo tempo técnicas e sugestivas do devir, o vir-a-ser das obras, naquele estado entre ser e não ser. No esboço-diagrama cognitivo de Thiago, fica claro que a sobreposição de objetos isolados é a operação principal que define o princípio da montagem de cada obra da exposição. Falamos de camadas de objetos separados que se sobrepõem diretamente, sem o uso de fixação ou outras estruturas, e que, ao fim e ao cabo, constituem as obras. É importante aqui notar dois aspectos. Em primeiro lugar, como, em sua armação conceitual, o artista valoriza a distinção entre sua obra e a escultura. Não se trata apenas de uma questão técnica de desbaste e modelagem versus objeto (de todo superada desde a escultura moderna), mas de um não pertencimento ativo à linhagem da escultura. 

        Claramente, chave de leitura dos valores escultóricos não é a mais interessante para estas obras. Por outro lado, e não obstante, um dos elementos que mais recorrem nesta pesquisa, copioso nesta exposição, é justamente o pedestal, compreendido como parte inextricável das obras e não apenas como objeto “neutro” de display. Poderíamos pensar uma história do pedestal que corresse paralela a uma história da escultura, até sua abolição, por um lado, ou até sua absorção em outras estratégias artísticas, como é o nosso caso aqui.

       Estaríamos, então, diante da representação das estratégias de apresentação, agenciada pelo desenho (design e desenho), mas numa lógica em que elas ativamente provocam o espectador, e não apenas em termos de metalinguagem? Analisemos a obra principal da exposição, Imagem (2008-10). Ali temos um elemento central, que é a cabeça de uma imagem de roca*** do século XVIII, um santo, encontrada pelo artista em um antiquário. Ela está fixada, na altura dos olhos do espectador, sobre um cubo espelhado, cujo tampo é recoberto por uma pele de animal. Fechando todo o arranjo, uma cúpula de acrílico, conferindo um aspecto quase científico e um tanto solene.

        Thiago se refere ao tempo de busca desta imagem como parte do trabalho despendido, mas, além disso, “o mais importante é que fosse uma imagem de olhar fixo, alinhado, atento”, em nada evanescente ou penitente. Aqui, o que está em jogo é, principalmente, o encontro do espectador com este olhar afiado, que o aguarda no espaço da exposição e, de certa forma, o precede ontologicamente e lembra a ele da sua condição de voyeur na sala. A tensão obtida entre a figura da escultura e o corpo do espectador é ainda mais evidente porque parte da superfície do trabalho é recoberta com espelho, elemento que remete ao narcisismo e ao transformismo, como a estimular uma fusão erótica entre o objeto e o sujeito, também porque a obra encontra-se sozinha na primeira sala da exposição. Outro elemento a se investigar é a pele animal, que neste contexto remete ao fetiche e a um estágio semianimado da matéria.

       O erotismo e a tensão do olhar, aproximando-o à noção de transformação e às metáforas do corpo, também estão presentes nas outras obras da exposição - materiais orgânicos, representação/apresentação e referências à visão se articulam. Todas as obras se constituem por precisos expedientes de sobreposição e montagem, agenciando o trabalho técnico esmerado (nos acrílicos, metais e espelhos), cujo resultado é colocado em diálogo com elementos brutos e orgânicos (peles, chifres e presas). O encontro entre estes dois registros faz com que eles se transformem mutuamente, num jogo de atração e repelência. No segundo andar da galeria, as obras dividem a mesma sala, como a se observarem mutuamente, operando uma troca recíproca de significados. Suas superfícies se remetem: um dos objetos é espelhado (Viravolta, 2008-10), e seu topo também é coberto por uma pele. Outra obra tem um par de lupas (Vis-à-vis, 2008-10), e Paparazzi (2008-10) é um par de espelhos – ambas fazem referência direta aos olhos, um tropo surrealista que o artista retoma conscientemente. Numa destas obras, Presa (2008-10), o jogo entre significado e significante, do objeto ao título, fica mais evidente. 

       Todos os trabalhos desta exposição vão em direção a um estranhamento profundamente desperto. Thiago fala de um ato que pergunta: “Quem olha e quem é olhado”? Fala de Hitchcock e daquela ansiedade, o suspense, deflagrada pela consciência do objeto sobre o sujeito, como na clássica cena de Psicose (1960), em que vemos Lila se aproximar da casa – que sinistramente a olha, num virtuoso lance de montagem entre câmeras subjetivas e objetivas. Esta aproximação, somada a outras leituras do filme e das obras de Thiago Honório, nos lembra como o ato de exibir tem a ver, antes de tudo, com a transformação.


—  Rodrigo Moura
São Paulo: Galeria Virgilio, 2010





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