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Há uma pedra feroz,
um rapaz,
há o olhar do rapaz atado à pedra,
o olhar do rapaz, a minha casa,
o olhar do rapaz às vezes é a pedra.


Luís Miguel Nava

































Thiago Honório: Ópera




        No início do mês passado, Thiago Honório apresentou uma nova exposição em Pueblo Garzón, no Uruguai, a convite da Piero Atchugarry Gallery. Intitulada Ópera, ela não começava nem acabava no território da galeria. Composta em três atos – flor, carne e pedra – a mostra demandou um corpo em deslocamento pelo espaço (a percorrer o pueblo) e pelo tempo (a percorrer o mito). Não havia ponto de partida ou ponto de chegada; não havia percurso claro. Espécie de fábula sem lição moral, Ópera foi a um só tempo a obra e seu vestígio, passado e futuro, memória e imaginação. Há mais de vinte anos, Thiago Honório produz uma obra reconhecida pelo seu caráter polifônico, inclassificável. Ao transitar pelos mais diversos formatos, não há qualquer metodologia pré-definida que paute sua produção, senão um compromisso com os desafios postos pela própria linguagem. 

        Dessa vez, central para a mostra foi o mito ancestral de Anahí. Filha de um cacique guarani e dotada de uma voz doce e distinta, conta-se que ela viu seu pai ser assassinado pelos espanhóis e lutou para proteger e libertar os seus. Finalmente capturada pelos colonizadores, foi queimada numa árvore que amanheceu com a copa coberta por flores de um intenso vermelho, no formato das chamas que a mataram, e cuja coloração também se refere ao sangue oferecido pela liberdade de seu povo. Nascia assim a flor ceibo, hoje considerada ícone nacional da Argentina e do Uruguai.

        Honório modelou em escala natural 600 flores de ceibo em cerâmica esmaltada, e as espalhou pelo vilarejo de Garzón. Elas foram responsáveis por pulverizar a exposição, nublando seus limites e contornos. Se o espaço expositivo tradicional demanda uma atenção centrada no império da visão, aqui, ao contrário, suas Anahí diluíam nosso olhar pela paisagem, nos conduzindo a caminhos erráticos, e nos convocando, em última instância, a experimentar o próprio pueblo como território fabular, em caminhada. Hermafroditas, essas flores contém em si os órgãos masculino e feminino em uma única estrutura carnuda que possui a forma de uma clava. Não figuram mais como ramos altos, mas como flores selvagens da relva, frescas e frágeis entre pés ligeiros, em sugestão erótica.

        O que querem é abrasar e arder a paisagem, subir a temperatura pelos calcanhares dos passantes desavisados que as perseguem como migalhas de João e Maria; lição de reencantamento. Ao ar livre, elas foram dadas não apenas ao público da galeria, aos turistas curiosos e aos próprios moradores locais, mas também aos insetos que as percorrem, às vacas, aos pássaros, aos cachorros e demais não-humanos ou extra-humanos. Plínio, o Velho, contava dos passarinhos que tentavam bicar as frutas pintadas por Zêuxis, tamanha a sua sedução virtuosa. Aqui, no entanto, a obra não quer falsificar a realidade, mas produzir uma supra-realidade: espaço no qual cotidiano e sonho são condições reflexivas de um mútuo engendramento. Se Garzón é, por sua própria identidade, um lugar dedicado a nos suspender no tempo e no espaço – espécie de geografia sempre estrangeira de si mesma –, o trabalho de Honório reforça tal dimensão com uma obra que é um “mito vivo", como queria Mircea Eliade. Anahí nos afirma que é possível também delirar com os bichos e os vegetais.

       Depois, há quem finalmente chegasse ao espaço da galeria para encontrar ali a já icônica série Pintura de Parede, iniciada em 2013 e com múltiplos desdobramentos desde então. O vermelho intenso das flores deu lugar ao vermelho-carne dessas composições feitas com lixas gastas em diversas espessuras, previamente utilizadas pelo artista na reforma de seu ateliê e de sua residência. Seu grid de anseio ortogonal é desafiado pela textura orgânica de peças que são fruto da fricção aguda entre dois corpos (lixa e parede) – encontro do qual não se pode sair ileso, sem marcas. Os padrões em vermelho e branco lembram a trama entre carne e gordura e tratam de vulnerabilizar a arquitetura, dando a ver suas entranhas ou produzindo-lhe ferida e hematoma, num gesto a um só tempo erótico e violento. Honório levou o público a imaginar o estábulo dos anos 1950 (que hoje abriga a galeria) todo em carne viva, despelado de sua própria história e dimensão cultural para ser puro corpo, membrana que negocia precariamente entre o dentro e o fora. 

        Não caberia chamá-lo, no entanto, de corpo-casa, uma vez que não há qualquer sugestão de ninho macio aqui, pronto a abrigar e acolher. Estamos mais próximos de um corpo frágil e desprotegido, exposto ao trauma, e que carrega consigo ecos ou vestígios dessas outras superfícies lixadas – casa e ateliê transportados em restos de poeira. Ironicamente, seu gesto torna essa arquitetura um lugar um tanto “desabrigado" de si mesmo, e o que confere aspecto carnal para essas lixas é justamente o seu desgaste: a ferida produzida na superfície áspera, rendendo uma forma construída a partir da sua subtração. “O mais profundo é a pele", diria Paul Valéry. Aqui, a profundidade é construída pela falta, presença ausente que nos leva a notar, finalmente, o próprio espaço expositivo como dispositivo alheio a qualquer fantasia de neutralidade: ele próprio sujeito; carne. Importante notar que Pintura de Parede nos remete ainda aos artifícios de visualidade ilusória que compõem o léxico Barroco, lançando mão da dramatização metafórica, da duplicação e do simulacro como recursos retóricos, estratégias caras à produção do artista. 

       Por fim, havia ainda a remontagem de Luzia, cujos olhos incrustados nas pedras miravam o público de longe. Quando esteve pela primeira vez em Garzón, para participar da residência artística CAMPO AIR em 2019, o artista construiu um sólido geométrico formado por pedras irregulares de granito cinza, recolhidas nos arredores do pueblo, com auxílio de um artesão local. Nele foram incrustados olhos de resina esculpidos por um santeiro mineiro para imagens de roca e devocionais, em menção direta à santa de nome homônimo. Quatro anos depois, a obra é remontada no mesmo pueblo, no mesmo local. 

       Era preciso caminhar até ela, isto é, querer vê-la. De longe, vislumbra-se apenas um totem endurecido, fechado em si mesmo enquanto demarca a paisagem essencialmente planar. Mais de perto, um par de olhos parece pouco a pouco humanizar a estrutura mineral, convertendo-a num híbrido de difícil categorização. Ora parece tratar-se de um corpo escondido sob a estrutura fortificada, ora uma pedra ela mesma viva, plena de subjetividade. Luzia é objeto e sujeito de uma só vez. Na medida em que seus olhos nos fitam, fazendo dela personagem, somos objetificados pela sua visão. Tal como Medusa, que tinha o poder de transformar em pedra os que olhavam diretamente para ela, a escultura precisa nos dar um contorno de coisa, invertendo temporariamente nossos papéis. Quem olha quem? Relembrando a célebre passagem de Georges Didi-Huberman, aqui, “O que vemos só vale — só vive — em nossos olhos pelo que nos olha". Na falta de uma linguagem comum entre pedra e homem, entre gado e gente (dado nada gratuito é o fato de que talvez Luzia seja mais vista por vacas do que por humanos), é ainda a troca de olhares um meio privilegiado (e misterioso) de comunicação. 

       Ópera nos situa diante de um aspecto caro à produção de Honório: trata-se de um fazer que não busca responder ao calor dos acontecimentos (nada interessado num presentismo encerrado no “aqui e agora”, na máquina de notícias pontuais). Pelo contrário, o que se costura é uma outra temporalidade, mais dedicada a lidar com o presente enquanto condição extemporânea. Ecos do passado e rumores do futuro se condensam nesses três atos, nesse corpo de obras ou “corpo em obras", como o artista gosta de se referir, talvez por isso elas nos transportem para tantas direções e afluentes. O sentido que constroem jamais é unívoco ou cristalino, e por isso encontram em Garzon uma paisagem ideal, uma casa que comporta o seu ruidoso silêncio, que faz vibrar no vento, quem sabe, também o canto de Anahí. 


—  Pollyana Quintella
Revista Palavra Solta, maio de 2023.






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