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* As descrições dos trabalhos são amplamente apoiadas nos escritos de Thiago Honório, cuja narrativa é parte constitutiva das obras.


























Sobre leituras e convocatórias: coerência e poesia na obra de Thiago Honório
(por Lilia Schwarcz e Thiago Honório)*





       Leituras, do artista Thiago Honório, é uma exposição com livros, sobre livros, e realizada numa biblioteca; essa sorte de panteão dos livros. 

       Sintética, silenciosa e poética, Leituras significa uma homenagem aos livros, mas também a uma estética dos livros. 

        O lugar em que ela se realiza é quase autorreferente e até metalinguístico: a icônica biblioteca Mário de Andrade, instituição cuja vocação primeira vincula-se ao modernismo paulistano, a despeito de não se limitar a ele. 

       A exposição significa também uma espécie de abreviado da consistente e coerente obra de Thiago Honório. Ela recobre 20 anos de produção deste artista mineiro, em diálogo com o barroco das Minas Gerais, e com o modernismo paulistano que selecionou esse tempo e esse lócus para pensar Brasil. 

       Composta por 18 trabalhos, executados ao longo de 20 anos — de 2003 a 2023 —, Leituras nos convida a pensar no livro como matéria, como conhecimento acumulado, como “substância inflamável”, (conforme o artista gosta de definir) e como forma estética. 

       A mostra celebra, ainda, os 130 anos do nascimento de Mário de Andrade. A produção do escritor modernista aparece em 9 trabalhos de Honório — Estudo para Leituras (2015), Leituras (2015/2018), Paulicéia (2018/2023), Tarsivaldo (2017), Tarsivaldo I, II, III, (2017/2022) e Memorando (2020). Além do mais, a exibição reúne obras desenvolvidas em diálogo com Mário de Andrade, com a produção textual e visual de escritores e artistas como: Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Flávio de Carvalho, Antonio Candido, Manuel Bandeira e Michel Foucault. 

       Leituras inclui, por fim, trabalhos que viraram livros produzidos com edição e tiragem mais generosas como: {[( )]}, Augusta e DULCINÉIA, produzido em colaboração com o coletivo de mulheres catadoras de papel do Glicério, o Dulcinéia Catadora.

       Sabemos que a Biblioteca Mário de Andrade, inaugurada em 1925, é a maior biblioteca pública da cidade de São Paulo, bem como uma das mais influentes e simbólicas em todo o país. Já Leituras vai ao encontro tanto da missão dessa instituição, como de seu papel na difusão da literatura e da arte, como também se alinha aos princípios, valores e tarefas incansáveis de seu fundador: Mário de Andrade.

        Como se verá, cada trabalho revê, à sua maneira, as possibilidades assim como dialoga, alegoricamente, com os limites do modernismo. 

       Uma imensa fita com corte a laser foi produzida em dimensões especiais, e agigantadas, muito distintas dos padrões comumente disponíveis no mercado de armarinhos. Sua ponta foi cortada no formato triangular – como vemos em livros e embrulhos para presente. A peça de tecido virou um Marcador com teares especiais para a tessitura de cetim, com 8 metros de comprimento e 70 cm de largura. O trabalho, em função de seu formato e magnitude, conversa com outros procedimentos e desenhos, que exploram escalas extraordinárias.

       Entre julho e agosto de 2019, o trabalho foi exposto na Estación Garzón, em Gárzon, no Uruguai, considerando-se o acesso envidraçado de sua fachada com frontão que remete ao estilo art déco. Por lá, ele dialogou com a translucidez dos vidros do local. 

        Na mostra, ela ganha um aspecto alegórico, lembrando com sua imensidão e protagonismo, a importância do processo de leitura, marcado por uma temporalidade que pede tempo e interrupção. Por outro lado, o marcador, como diz seu título, marca a própria atividade. E lembra. 

       No ano de 2002 Honório se mudou para um apartamento com visão para a rua Augusta, justamente numa parte da rua um lugar conhecido por conta da agitação que gira em torno das movimentadas saunas, casas de shows e de striptease, clubes noturnos, bares, pequenos cortiços, comércios miúdos e outros tantos estabelecimentos locais. E assim nasceu Augusta.

       Augusta foi primeiro entrevista da janela da cozinha e do parapeito da área de serviço vazada daquele apartamento.  A vibração da rua invadia o espaço privado, e se impunha como um dentro marcado por um fora.

        Naquele primeiro momento, o projeto consistia em anotar, desenhar, cartografar, registrar, esboçar, mapear e anotar os nomes e numerações dos estabelecimentos. Mas um enunciado roubou a atenção do artista. “Escrevo para apagar meu nome”. A frase contém uma função paradoxal de apagamento: registra e silencia. 

       Ainda em 2003, veio a ideia de editar um livro que foi intitulado Augusta e, depois, Augusta Express. Passados quatorze anos, Augusta voltou — como rua, projeto, trabalho, livro, nome, personagem e como uma forma de síntese daquela experiência. Em 2017, um livro de papel-embalagem constituído por números e nomes impressos, com título-nome Augusta foi finalmente publicado. Ele e sua espécie de matriz Augusta Express, realizada em 2003 agora fazem parte da exposição Leituras.  

       A obra Pau-Brasil (2014) é estruturada a partir do perfil de madeira pau-brasil que atravessa o livro homônimo de Oswald de Andrade, justamente no espaço onde originalmente figurava o título do livro. 

       Publicado pela primeira vez em 1925, Pau Brasil apresenta na capa as formas da bandeira brasileira devidamente estilizadas. A publicação é composta por poemas, os quais, por sua vez, alinhavam-se com a filosofia e os desafios da Semana de Arte Moderna de 1922 e com o pensamento do “Manifesto Pau Brasil” de 1924. 

        Por sua vez, na obra de Thiago Honório, há um uso real e metafórico do pedaço de madeira pau-brasil que empala o livro.  Ele agora representa a forma material de cruzamentos culturais que não espelham apenas a mistura, mas sobretudo os cortes, as rupturas, as violências e perdas vigentes desde o período colonial e que se mantiveram constantes no contexto da Primeira República; período em que o modernismo paulistano virou uma linguagem e depois um cânone literário. É o corte, nesse caso, que interrompe a consagração modernista, e impõe a reflexão sobre o passado.

       Equações possíveis consiste numa apropriação da primeira edição do livro “Experiência nº 2”, de 1931, Flávio de Carvalho. Nela, o artista apresenta a “performance” que realizou na procissão de Corpus Christi, no centro da cidade de São Paulo. Ele atravessou o fluxo processional na contramão dos demais participantes. Resultado: quase acabou linchado por uma massa de fiéis revoltados com o gesto. 

       Neste momento em que vivemos, ainda marcado pelos discursos autoritários e pela exacerbação de um movimento evangélico radical, Equações possíveis surge como sinaleiro que une o passado no presente. A atitude de Flávio de Carvalho, que ousou inverter o fluxo da multidão, significa um apelo sensível e urgente para romper com os limites e dogmas desse momento em que nos foi dado viver.  

       Já na obra de Honório, o exemplar que apresenta a performance é disposto sobre um porta-bíblia, adquirido em uma das inúmeras lojas de artigos e souvenires religiosos da vertente cristã de “renovação carismática”. Assim exposto, ele pede por outras leituras, e novas interpretações. É de alguma maneira dessacralizado e permanece na contramão, como fez Flávio de Carvalho.

       Na obra Ponta de lança, um punhal sertanejo nordestino do início do século XX é incrustrado na primeira edição do livro homônimo, publicada em 1945 por Oswald de Andrade. O cabo e a ponta do punhal ficam expostos, enquanto a lâmina é parcialmente recoberta pelo livro. Ocorre, então, uma espécie de contaminação: os adereços da ilustração da capa parecem se integrar perfeitamente aos desenhos ornamentais presentes na superfície metálica do cabo do punhal, que trazem a estética do cangaço na superfície metálica do cabo do punhal. 

        Visto dessa maneira, o livro de Oswald ganha ainda outra figuração. A obra do modernista traz uma série de conferências transcritas, bem como artigos publicados pelo autor nos jornais Folha da Manhã, O Estado de S. Paulo e Diário de São Paulo, entre 1943 e 1944. A verve crítica de Oswald fica clara nessa obra. Interessante observar o trabalho e notar como a arma do cangaço — com sua vocação social — se une ao tom mordaz do crítico. Arma sobre arma; crítica em cima da crítica.

       Brigada ligeira apresenta um estojo de projétil de 20 mm datado de 1945. O objeto aparece então incrustrado na primeira edição do livro homônimo, e publicado no mesmo ano pelo crítico Antonio Candido; ele mesmo um dos grandes divulgadores e animadores do cânone modernista. 

       Brigada ligeira é o primeiro livro do, ainda jovem, Antonio Candido, e reúne alguns textos retirados de sua coluna semanal, chamada “Notas de crítica literária”, publicada no jornal Folha da Manhã. Aqui a arma serve a outros propósitos. A luta pelo esclarecimento, a batalha pelo espírito crítico e pela formação da cidadania. Mais uma vez, há uma espécie de efeito mimético entre o objeto e o livro, mas também um deslocamento de sentidos, próprio, aliás, da atividade de leitura.  

        {[( )]} é um livro absolutamente único. É também um objeto escultórico com muitas formas e construções possíveis. Conta o artista que, ao elaborar este livro, pensava sempre no verbo “livrar”, conjugado na primeira pessoa do singular: eu me livro. {[( )]} trata, pois, daquilo de que nos livramos, que um dia se perdeu, que foi esquecido. 

        Honório pretendia realizar, assim, um primeiro livro que fosse livre: livre para uma manipulação não hierarquizada, não autoritária, sem paginação certa ou sequência causal, destituído da ideia de desenvolvimento, não encadernado. Ele seria dessa maneira, lúdico, podendo ser montado, desmontado e remontado em qualquer configuração. Esse é, pois, um livro livre. Livre de um formato pré-concebido, de uma leitura que se faz da esquerda para a direita, do alto para baixo, da frente ao verso, com um só direcionamento e conclusão. Como deve ser, aliás, a atividade de leitura, que nasceu livre por definição.

        A obra A vontade de saber consiste num arranjo formado pela primeira edição do livro “Histoire de la sexualité 1: La volonté de savoir” (1976), de Michel Foucault. A capa do livro.   publicado pela prestigiosa editora francesa Gallimard, encontra-se, entretanto, perfurada, exatamente no ponto onde estaria a preposição par (“por”): “par Michel Foucault”. O furo é atravessado pelo caule de uma flor; neste caso, um antúrio natural. Ao transpassar o livro, o antúrio – preferencialmente vermelho – é equilibrado pelo seu próprio peso. Trata-se de um equilíbrio improvável, mas o certo é que o caule que sustenta essa flor em formato de coração, com a espiga ereta, atravessa todo o livro disposto sobre a base. 

        Flor ornamental nativa das regiões tropicais, o antúrio costuma ser visto em vasos, e decorações de interiores e jardins. Sua parte interna, e muitas vezes de cor vermelha e em formato de coração, é chamada de bráctea e tem a função de atrair polinizadores à planta. Por seu formato e cor, a flor ganhou vários significados. Na Umbanda, por exemplo, essa planta agrada aos Exus, sendo utilizada como oferenda e na limpeza espiritual. O antúrio é, pois, a um só tempo bela ao olhar, espiritual, e exala sensualidade no seu formato e na sua cor. 

       Por sua vez, em A vontade de saber, o filósofo francês, apresenta uma longa história da sexualidade no Ocidente, mostrando como as restrições à sexualidade implicaram, paradoxalmente, no seu incentivo.  E mais uma vez a arte duplica a realidade, a extrapolando. Não reproduz, mas produz e cria significados associando  o tema do livro com o formato da flor. A vontade de saber é conceito e forma a um só tempo.  

        Em 2017, Honório foi convidado pelo coletivo feminino Dulcinéia Catadora, para desenvolver um “livro-obra”. O coletivo data de 2007 e foi formado por Lúcia Rosa, após um trabalho colaborativo com Eloísa Cartonera na 27ª Bienal de São Paulo. Não era a primeira vez que o Dulcinéia realizava livros com artistas; já havia colaborado com Fabio Morais, Élida Tessler, Keila Alaver e Paulo Bruscky.

       A obra nasceu, então, como um processo de conversas trocas entre Thiago Honório e quatro mulheres do coletivo. DULCINÉIA foi totalmente elaborado com o papelão de embalagens e escrito com um instrumento usado no ato de catar papéis: o agulhão. Os furos, por sua vez, desenham o nome próprio “Dulcinéia”. O livro apresenta as letras desse nome, dispondo-as individualmente em uma página, escritas por diferentes gestos, forças, expressões e estados de ânimo. Além do mais, o nome foi escrito pelas oito mãos e quatro cabeças das mulheres integrantes do coletivo Dulcinéia Catadora. Por sinal, cada um dos livros traz, pelo menos, uma letra ou marca de cada uma dessas quatro mulheres: Agatha Emboava, Andreia Emboava, Lúcia Rosa e Maria Aparecida Dias da Costa.

       Leituras  traz uma dimensão performática associada ao ato da leitura. Pode-se ler em silêncio ou em voz alta, a sós ou em público, mas também para o público.

        No caso desta obra, uma pessoa lê, em voz alta e em público, o texto de Mário de Andrade, “O Aleijadinho e a sua posição nacional”, escrito em 1928. A leitura de uma página, por dia feita no Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, Minas Gerais, e gravada cotidianamente – dia a dia –, enquanto essa mesma página correspondente àquela lida em voz alta em Congonhas era mantida aberta no livro presente na exposição. O vídeo resultante desse ato marcado por cortes será exposto pela primeira vez nessa mostra na Biblioteca Mário de Andrade.

       O trabalho de leitura realizado em Leituras é, portanto, parcial, e se dá no âmbito da sua própria parcialidade. São necessários 58 dias de exposição, correspondentes às 58 páginas do texto da primeira edição do livro, para que ele se complete. A obra alude, assim, à fratura de uma leitura sincopada pelo tempo.

        A leitura do texto começou como atividade coletiva: um orador lia para a sua comunidade.  Com a rotinização da atividade, ia ficando claro como todos liam de alguma maneira juntos, assim como esperavam juntos por mais um dia de continuidade da leitura. 

        A obra de Honório ganha, dessa maneira, muitas dimensões heurísticas, evocando a própria pluralidade de atividades e conhecimentos, individuais e coletivos, envolvidos no ato da leitura. Aquele que lê faz do texto uma performance. Ademais, o artista escolhe justamente esse ensaio de Mário de Andrade, que buscava por uma identidade nacional, num momento em que ainda se acreditava nesse tipo de unidade utópica. 

       Na obra Miolo, o artista perfura o miolo e a capa do fac-símile do livro “Pau Brasil” (1925), de Oswald de Andrade. Dessa vez é a faixa onde estaria escrito o lema “Ordem e Progresso”, na bandeira do Brasil, que é retirado da capa. Desconstruído e embaralhado, esse miolo, agora aparece a partir disposto por sobre um prato de porcelana branca em formato oval. Tudo pronto para a deglutição de letras. 

       Ouro Preto é constituído pela primeira edição do livro “Guia de Ouro Preto” (1938), escrito por Manuel Bandeira, e de uma lupa apresentada por sobre a ilustração de Luís Jardim. A lente aumenta o que é miúdo, e destaca a importância de uma cena preciosa, que deve ser visto de perto. Neste caso, trata-se de maximizar não só o valioso minério extraído das minas de Ouro Preto, como o conteúdo da leitura. Por outra parte, a obra convida a reexaminar, agora de forma crítica, o violento passado colonial escravista. A lupa, objeto do historiador que vê pelos detalhes, se presta assim ao escrutínio do documento, à análise de um passado que não é e não pode ser sacralizado.  

       Paulicéia é um trabalho formado por uma escultura de concreto onde é incrustrada uma edição facsimilar do livro “Paulicea desvairada” (1922), de Mário de Andrade. A obra inclui o objeto escultórico, a ação performática realizada na rua da Consolação, no centro da cidade de São Paulo, e em um vídeo que a registra.

        O trabalho apresenta uma operação recorrente na produção de Honório: superfícies transplantadas a partir de procedimentos como deslocamentos, cortes e montagens.

        A obra toma como matéria o primeiro livro de poesia modernista brasileira, “Paulicea desvairada”, escrito por Mário de Andrade entre 1920 e 1921, e publicado em 1922. O livro é feito a partir dos passeios do poeta pelas ruas da “Paulicea”; uma São Paulo que em seu desvario se desenvolvia levando junto com a ideia de progresso, os próprios limites da sua decadência. 

        “Paulicea desvariada” surgiu, pois, num contexto de mudanças aceleradas na metrópole: modernização ligeira e desordenada combinada com uma grande expansão demográfica. Um projeto de urbanização que carregava consigo a sua própria destruição e o apagamento feito na base da pedra e do concreto. 

        Na releitura sensível de Honório, o mesmo losango presente na capa de “Paulicea desvairada” é agora recortado da superfície e extraído. Vale lembrar que, a forma geométrica do losango remete ao tipo de padronagem usado nas roupas dos arlequins, que por sua vez refaz a imagem dos bobos-da-corte, dos bufões. 

        Esses personagens, além de divertir seu público, também faziam sátiras das pessoas presentes e de suas situações sociais. O losango traz igualmente como referência o revestimento que recobre o calçamento dos grandes centros urbanos. Já no caso da obra de concreto de Honório, a escultura vira espaço da cidade, registro urbano do livro, espaço fugidio na lógica da urbanidade. Pequeno detalhe a ser lembrado e esquecido.  

        O trabalho Memorando, proposto para a primeira edição do projeto MAPA – No calor da hora, buscou discutir de forma poética e política as noções de acesso e de tentativa de interdição – sob a forma da censura – à leitura.

        A obra de Honório reflete o resultado de um convite feito ao artista para que explorasse a dimensão da publicidade, dos grandes lambes, que já fazem parte da paisagem numa via expressa da cidade de Porto Velho, em Rondônia. 

        Na época da encomenda, Honório pouco conhecia acerca da cidade. Foi então que Thiago Honório lembrou da experiência do “antiviajante”, Mário de Andrade.  Ou seja, o único registro que conhecia acerca do local era retirado das páginas de “O turista aprendiz” e das fotografias feitas pelo escritor, com sua “codaque”.

        O artista também teve notícias, em 2020, acerca do “Memorando-Circular n.º 4/2020/SEDUC-DGE”. Nesse documento, enviado no dia 6 de fevereiro de 2020 às Coordenadorias Regionais da Educação pela Secretaria de Educação de Rondônia, mandava-se recolher das escolas livros como “Macunaíma”, de Mário de Andrade, e mais 42 livros clássicos: dentre eles, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, e “Os sertões”, de Euclides da Cunha.

       Esses eram tempos de um governo fascista e autoritário, que incentivava o recolhimento e a censura de livros importantes da literatura brasileira, sob a alegação de subversão e maus princípios. E foi assim, como uma atitude dissidente, que surgiu a ideia de Memorandoobra em forma de outdoor e lambe. Nele, aparece em proporções majoradas a capa da obra censurada. 

       Assim, na direção contrária da censura, ao invés do apagamento Honório realiza uma superexposição, a qual, se presta igualmente como um incentivo à leitura. Nesse sentido, durante a exposição, ela se manterá exposta, no lado de fora da Biblioteca Mário de Andrade, sob a forma de outdoor.

       Tarsivaldo I, II, III (2017-2022) corresponde a três trabalhos únicos, cada qual formado por três fac-símiles do livro “Pau Brasil”, de 1925, de Oswald de Andrade, tomando como princípio a operação contida no trabalho placa-mãe Tarsivaldo, realizado em 2017. “Tarsivaldo” era o apelido dado por Mário de Andrade ao casal Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, em poema homônimo a eles dedicado e escrito em 7 de dezembro de 1925.

        De certo modo, os trabalhos de Honório presentificam e atualizam os personagens desse trio modernista, justapostos e colados uns aos outros. As obras são uma paródia, assim como o nome-título-colagem “Tarsivaldo”. Mário de Andrade costumava dizer em seu poema a seguinte frase: “até ficar bem pegajento”. E assim fica. 

       No caso de Tarsivaldo e de Tarsivaldo I, II, III, além da colagem dos três fac-símiles, a um só tempo sobrepostos e desarranjados, foram feitos cortes em cada um dos três livros. Ao invés do viés de certa maneira nacionalista, os cortes introduzidos pelo artista trazem à superfície dos trabalhos um sentido que nos conecta com as violências, vazios e perdas relativos ao período colonial e ao nosso contexto também.


Do duplo e do simples

        Há na obra de Thiago Honório, portanto, um sentido projetivo e uma reflexão acerca do caráter metalinguístico da cultura. Em seu conjunto, os trabalhos revelam-se como duplos, que deixam de lado o contexto original para produzir outros. Mas o outro é aqui o mesmo. Ou o outro do outro, na medida em que cada obra relembra o passado e celebra novos presentes.  

        Já o artista vira uma espécie de modernista ao revés. Seus trabalhos não consagram. Antes revelam fissuras desse projeto que mostrava suas falácias logo nos anos 1930. A realidade não resiste ao olhar da lupa; a representação da modernidade benfazeja a vira violência, a incompletude de um livro vira espetáculo.  

       Pois tudo na obra de Honório é citação e deslocamento. O artista é o arlequim que parece agradar, mas critica, que denuncia enquanto acomoda. Essa é uma arte que, em sendo conceitual, pode e deve ser analisada na beleza e na pureza que suas formas desenham no espaço: uma fita azul flutuante contrasta com o concreto pesado no chão; a flor vermelha em coração perfura o livro que é também cortado por uma lança; o outdoor anuncia o que a censura impede; a bala é uma brigada pela educação. 

       Leituras é assim uma homenagem aos deslocamentos que a obra de arte faz. É uma homenagem também ao universo dos livros com suas utopias e impedimentos. É por fim uma homenagem às próprias bibliotecas que têm como utopia conter todo o conhecimento do mundo. 

        Por isso são também as primeiras a arder diante de governos autoritários, e as primeiras a ressurgir em governos democráticos. Livre da censura e afeita a todo tipo de ressignificação pois a cultura é isso: não a pedra que fica no fundo do rio, mas o próprio rio.

        A obra de Thiago Honório é feita do deslocamento incessante da água do rio.  


—  Lilia Schwarcz e Thiago Honório
São Paulo: Biblioteca Mário de Andrade – BMA, 2024. 




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