Arte tem a ver com uma produção de falta.
Thiago Honório
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Revista Isto É, edição 2273, 07.Jun.13.
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Ernst Fischer, A Necessidade da Arte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1977, pág. 52.
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Walter Benjamin, Obras Escolhidas Magia e Técnica. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1984, p. 176.
Todo instrumento é um instrumento (mágico) de poder
Documents, obra de 2012, do artista Thiago Honório, traz 45 instrumentos de corte dispostos – justapostos – em uma prancha de 6,3 metros de comprimento por 0,82 de largura apoiada sobre cavaletes. A montagem dá ao conjunto a impressão de uma catalogação de objetos em exposição para olhar científico.
À diferença do que seria uma mostragem assim, aqui os objetos estão literalmente expostos. Não há redoma de vidro para os proteger – ou a nós.
As facas estão ao alcance das mãos.
O contato visual com a obra é arrebatador. É estético – há uma beleza formal própria de cada um desses instrumentos de corte e também na sua cuidadosa disposição. É bonito de ver. É ameaçador.
São serrotes, adagas, facas, foices, cutelos etc., comprados em Paris no primeiro semestre de 2012 durante o período de residência na Cité Internationale des Arts, parte do Programa de Residência Artística da FAAP. A obra foi apresentada pela primeira vez na 44a Anual de Artes da FAAP em novembro do mesmo ano, onde ficou exposta até fevereiro do ano seguinte. Após, Documents foi adquirida pela colecionadora Roberta Matarazzo e doada ao MAC USP em fevereiro de 2014. No museu, a instalação participa da exposição O Agora, o Antes: uma síntese do acervo do MAC USP, até dezembro.
“Há tempos queria fazer um trabalho que questionasse – em toda a sua dimensão processual e performática – as camadas da ideia de ‘trabalho’ e a expressão ‘trabalho de arte”, Thiago Honório afirmou em entrevista à Revista Isto É*.
O procedimento de apropriação e de montagem é característico do trabalho de Thiago Honório, mas vou me deter especificamente em Documents – porque me parece que ela também contém a síntese do universo que interessa ao artista. Há nele sempre uma espécie de procura por uma arqueologia dos materiais, dos procedimentos e dos significados da arte.
O nome Documents é também bastante sugestivo. Em sua fala na programação “MAC encontra os artistas”, em maio do ano passado, Thiago pergunta: no que consiste o trabalho de produção do artista, senão na produção de uma falta? E cita Jasper Johns: “um objeto que revela perda, destruição, desaparecimento de objetos não fala de si mesmo, fala de outros”.
Que outros objetos poderiam nos fazer buscar, esses, os que estão expostos por Thiago Honório? Somos tentados a “completar” a sequência. É uma sequência de objetos de corte. O que estaria mais atrás ou mais adiante? Sua disposição não é cronológica, haveria outros “cortes” temporais, espaciais, formais além deste? Outros cortes de catalogação? “O autor é autor da sua obra”, diz Borges, “e o leitor da sua leitura”, continua.
Documents me levou subitamente a um texto fundamental da Estética e da Sociologia da Arte: A Necessidade da Arte, de Ernst Fischer. Especialmente ao seu segundo capítulo “As Origens da Arte”. Aqui faço meu corte, a partir do corte proposto por Thiago.
Fischer faz uma leitura ao mesmo tempo marxista e, digamos, darwinista, da necessidade da Arte. Sua questão é: Porque “precisamos” da arte? Pois, se a criamos, o fizemos em resposta a uma necessidade. Assim, a pergunta contém uma premissa axiomática: a necessidade move a criação. E essa é uma premissa marxista/darwinista.
Como, então, descobrir a necessidade da arte? Procurando descobrir a que necessidade ela respondia no momento mesmo de ser inventada. Mas isso leva a indagar mais além o lugar da arte na sucessão de invenções. Fischer refaz assim uma possível cadeia dos instrumentos. Tudo nasce como instrumento.
Consideremos, segundo o raciocínio de Fischer, que o primeiro instrumento tenha sido uma simples vara. Uma vara qualquer encontrada ao acaso. Que o “animal pré-humano”, como ele chama, a tenha utilizado, “instintivamente” – paradoxalmente o instinto da razão –, para alcançar um fruto. Esta vara ele guardaria e, no próprio ato de guardá-la, ele já a teria transformado num instrumento – um “instrumento ocasional”, nas palavras de Fischer.
Como veremos, esse primeiro instrumento contém todos os outros – também a “magia” de inventá-los.
A proposição do autor lembra a antológica cena de 2001 – Uma Odisseia no Espaço em que um grupo de primatas estranha o aparecimento de um monólito na cavidade onde protegiam o seu descanso. Após, durante o dia, o grupo, talvez o mesmo, “caminha” sobre ossadas secas de animais. Um deles manipula os ossos. Na conhecidíssima cena, a música tema introduz e assinala a importância do evento. O primata é investido de ira e força: bate vigorosamente o osso contra o chão. Num corte rápido, quase subliminar, um animal tomba morto; num movimento mais longo o primata joga o osso para cima, filmado agora em close contra o céu, e, em outro corte magnífico, a cena passa para o espaço e encontra uma nave alongada. Como o osso. Como o monólito. Como a nave espacial.
Em sua fala no MAM, Thiago Honório também se refere ao “corte” como procedimento fundamental da montagem no cinema tal como a formulou Eisenstein: a justaposição que produz novos significados.
Documents parece “documentar” mesmo essa procura pelas “camadas de trabalho” envolvidas no processo artístico. E é incrível que sua escolha tenha recaído sobre os objetos de corte e sua pluralidade semântica.
Aqui consigo reunir minhas referências: Todo instrumento é um instrumento de poder. No seu sentido polissêmico. Os objetos cortantes de Documents explicitam esse poder. Explicitam a polissemia desse poder.
A vara, o osso, ou a pedra lascada, quem quer que tenha começado a odisseia dos instrumentos, já guardava em si o poder e o “desejo de poder infinito” que ela iria despertar no homem.
Pois, para Fischer, o instrumento, se não precede a razão, a faz despertar. Despertar movido, primeiro, pela “mera” necessidade de sobrevivência. Esses primeiros instrumentos encontrados casualmente serão usados, serão manipulados. Seu uso despertará no homem um conhecimento novo sobre a natureza e as próprias possibilidades do instrumento recém-achado/inventado.
Em seu manuseio, o homem descobrirá poder tanto imitar quanto aperfeiçoar os objetos encontrados na natureza. De aprender a aperfeiçoá-los pelo uso, passará a projetá-los, criará um mundo de instrumentos. A própria linguagem será decorrência disso. Uma vez criados os instrumentos, o homem produzirá o trabalho e o trabalho exigirá dele o desenvolvimento da comunicação. Assim, como todos os instrumentos, também a linguagem surge “ocasional”: são os próprios sons da natureza que o homem imita para depois também aperfeiçoá-los como código.
Devemos dar a Fischer o mesmo que pediu Darwin ao explicar sua teoria da evolução: é preciso imaginar essa sucessão acontecendo em uma enorme escala de tempo, ainda que a de Fischer seja bem menor do que a exigida por Darwin.
Nesse “big-bang” da cultura gerado pelo primeiro instrumento, tudo estava virtualmente contido: o instrumento ocasional, a produção do instrumento por imitação, o trabalho e a linguagem, nascida também como instrumento. Na frase-síntese de Fischer: “o homem inventa os instrumentos, mas os instrumentos também inventam o homem.”
Essa experiência original, segundo Fischer, inspira no homem uma “sensação de poder” e, ao mesmo tempo, um desejo de “poder infinito”. Aqui estaria a semente da separação do homem em relação à natureza, essa que ainda não se vê sentir nos primeiros grupos humanos. Aqui também está talvez o ponto mais difícil, mais abstrato, de Fischer: a sensação de poder equivale à magia, ao sentimento mágico, ao desejo de produzir “instrumentos” imitando a natureza numa escala superior, para, por assim dizer, ultrapassar a sobrevivência imediata. O mito é esse instrumento. Marcell Mauss e seu “Ensaio sobre a Dádiva” devem ser lembrados para ajudar a compreender o mecanismo de produção e funcionamento do mito no modo como o vê Fischer. Ainda “A Eficácia Simbólica”, de Levi Strauss.
O surgimento do Mito é, pois, resposta a uma necessidade da sobrevivência do grupo, é uma forma, mágica, de trabalho.
Mas esse “trabalho” tem sua especificidade: Além de atuar na “garantia” do sucesso da caça ou das trocas simbólicas, ele é produtor de unidade social e de sentido. Pois a luta pela sobrevivência mais imediata, aquela que é feita com os instrumentos mais “concretos”, produzirá a fragmentação da comunidade primitiva na muito mais tardia sociedade de classes.
Por isso a Arte só poderia ter no Mito seu antecessor mais imediato. E o artista, no feiticeiro. A resposta de Fischer sobre qual necessidade a arte respondia:
A tarefa do artista era expor ao seu público a significação profunda dos acontecimentos, fazendo-o compreender claramente a necessidade e as relações essenciais entre o homem e a natureza e entre o homem e a sociedade, desvendando-lhe o enigma dessas relações; (...) cabia-lhe conduzir a vida individual de volta à existência coletiva, unir o pessoal ao universal; cabia-lhe restaurar a unidade humana perdida**. (grifo do autor)
Páginas depois finaliza: “numa sociedade em decadência, a arte, para ser verdadeira, precisa refletir também a decadência”. Fischer vai mais longe. Acredita ainda que, para exercer sua função social, a arte deveria, inclusive, ajudar a mudar o mundo. Não é o caso de entrar nesse argumento agora – interessa aqui a associação feita por Fischer entre instrumento, magia e arte. E à função que a todos liga. A natureza do homem passa a ser inventar sua “supra-natureza”.
No clássico “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”, Walter Benjamin também refletiu sobre a técnica como uma “segunda natureza”. No caso de Benjamin, essa segunda natureza se dá apenas com a “técnica emancipada” da reprodutibilidade técnica. De todo modo, mesmo ela é uma decorrência da natureza técnica já contida no primeiro instrumento. E também para Walter Benjamin a arte é chamada a cumprir seu papel. No caso, é o cinema quem nos reconecta com essa segunda natureza criada.
Diante dessa segunda natureza, que o homem inventou mas há muito não controla, somos obrigados a aprender, como outrora diante da primeira. Mais uma vez, a arte põe-se a serviço desse aprendizado. Isso se aplica em primeira instância ao cinema. O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas – é essa a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido***.
Documents, de Thiago Honório, é uma epifania. Traz à cena, por esses instrumentos de corte e sua aparência arqueológica, o testemunho de todos os outros instrumentos ausentes, desaparecidos, perdidos. Nos leva de volta a uma cena inaugural carregada de todas as ambivalências arquetípicas: a imitação, a invenção, o poder, a magia e um universo de sentidos a se construir.