Disposição, 2016
São Paulo, 16 de fevereiro de 2016.
Entre um ser e outro há um abismo, uma descontinuidade. Esse abismo situa-se, por exemplo, entre vocês que me escutam e eu que lhes falo. Tentamos nos comunicar, mas nenhuma comunicação entre nós poderá suprimir uma primeira diferença. Se vocês morrerem, não sou eu que morro. Nós somos, vocês e eu, seres descontínuos. (...) somos seres descontínuos, indivíduos que morrem isoladamente numa aventura ininteligível, mas temos a nostalgia da continuidade perdida (...)*.
Caros Alexander, Bianca, Cleo, Júlia, Karola, Luccas, Luiza, Maristela, Natasha, Paula, Santarosa e Selene,
Escrevo essa carta um dia antes do trabalho-exercício-desafio que lhes proponho. Trata-se de um trabalho discutido com Ana Paula no final de 2015, sobre o qual lhes falarei agora.
Disposição consiste num movimento de dispor energias, matérias, materiais, objetos, acúmulos, coleções, trabalhos outrora iniciados, inacabados, interrompidos, em estatutos diversos, mas distantes da emancipação em qualquer esfera pública. Trata-se de objetos-coleções-obras elaborados por mim nos últimos 15 anos e resgatados entre arquivos, depósitos e guardados. Disposição se dá, portanto, no ato de colocar tais objetos à disposição para escolha, continuidade, descontinuidade, ressignificação à luz das poéticas de cada um de vocês, de seus trabalhos, de seus modus operandi. O processo se dá a partir de uma morte que, nesse caso, também é vida, uma vez que esses objetos estarão abertos a outras experiências, outros estados de ânimo, outras forças, energias, referências, outros, enfim, no plural. Em alguma medida, essa “partilha” é também um desafio de colocá-los, artistas, integrantes do Agosto**, nas mãos de uma profissional a quem lhes confiarei, nesse caso, a curadora e professora Ana Paula Cohen. A partir disso, e em Disposição, com sua sensibilidade, rigor e metodologia própria, Ana Paula trabalhará com vocês no transcorrer desse primeiro semestre de 2016.
O meu trabalho se encerra onde começa o de vocês com Ana Paula. Já dizia Paulo Freire (1921-1997) que “onde há vida, há inacabamento. (…) o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital”***. Há inacabamento nas reuniões diversas de todos os objetos presentes em Disposição, que agora estarão fadados à fusão. Irão, descontínuos que são, ter outra(s) continuidade(s). Estão diante de uma morte que, a um só tempo, é vida, em vocês, num princípio e movimento bataillianos.
Desejo a todos um ótimo trabalho!
Thiago Honório
*
In: BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 12-15.
**
Grupo de acompanhamento de projetos e discussões que coordeno, formado em agosto de 2014. No momento em que o texto foi escrito, os integrantes eram: Alexander Dejonghe, Bianca Abad, Cleo Döbberthin, Júlia Milaré, Karola Braga, Luccas Iatauro, Luiza Gottschalk, Maristela Cabello, Natasha Ganme, Paula Scavazzini, Santarosa Barreto e Selene Alge.
***
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 50.
Ficha técnica
Disposição, 2016
28 trabalhos inacabados desenvolvidos pelo artista ao longo de 15 anos,
em linguagens, mídias e
suportes variados, dispostos à escolha de 12 artistas,
integrantes
do grupo Agosto
Em colaboração com a curadora Ana Paula Cohen, e os artistas Alexander Dejonghe, Bianca Abad, Cleo Döbberthin, Júlia Milaré, Karola Braga, Luccas Iatauro, Luiza Gottschalk, Maristela Cabello, Natasha Ganme,
Paula Scavazzini, Santarosa Barreto e Selene Alge
Dimensões variáveis
foto: Edouard Fraipont
Exposições
Ateliê do artista, SP, 2016