Enigmático território do comum
Na vertigem do mistério dos objetos e do enigma que deles emana, Thiago Honório constrói a obra Trabalho, exposta no MASP. De escadas, picaretas, enxadas, marretas, serrotes, pincéis e espátulas utilizados no restauro de uma antiga estação de fornecimento de energia, o artista desvela um saber que acontece pelas mãos. Da negociação inicialmente clandestina com pedreiros e mestres de obras, se instala a dimensão da troca e de uma política absolutamente singular, sustentada na ética do vestígio, do rastro e daquilo que não se pode apagar ou cobrir.
No diálogo com a arquitetura brutalista, franca e despida de Lina Bo Bardi, as ferramentas parecem brotar do material cru e do concreto aparente e, ao embaralhar instrumentos que chegam de maneiras distintas (via negociação ou por doação), o artista reinventa não só o espaço do museu, como também o lugar do trabalho, tensionando o laboral, entendido como tarefa árdua ou de força, e que, na obra, adquire sentido na potência da sutileza, em um agrupamento que segue uma lógica quase musical, na medida em que a disposição das ferramentas surge como resposta singular ao inacessível contido no gesto de doação, ao vazio que constrói um espaço de ressonância entre os objetos, vazio que faz vicejar dádivas, à maneira invocada por Georges Bataille.
Para Bataille, o mais mundano ou sagrado sacrifício humano, a construção de uma igreja ou a dádiva de uma joia ou de uma obra de arte, não tinham mais interesse do que a venda de trigo. No ensaio “A noção de dispêndio”, Bataille evidencia a tentativa de abarcar, em um mesmo espaço reflexivo, domínios do conhecimento tão diferentes quanto antropologia, religião, sociologia, arquitetura, arte, filosofia e economia. Aí também se inscreve a força da voz soterrada que Thiago Honório evoca ao refundar uma dimensão do trabalho como sistema de performance social e produção que extrapola a importância econômica e moral. Há algo que se encontra violado de partida e que a dádiva quase milagrosa atualiza no gesto de doação, reinserindo pulsação nos objetos para além de sua funcionalidade apaziguadora.
Subvertendo o uso das ferramentas, Thiago Honório nos leva ao espanto de um mundo onde o objeto não se confina a seu significado, valorizando e reconfigurando, através dos múltiplos sentidos que emergem dos instrumentos, a dimensão viva e inquieta de um trabalho aberto ao imprevisto, ao inesperado, transfigurando e transgredindo qualquer aprisionamento funcional e instalando o risco e o rasgo num gesto rascunhar, que acolhe o informe como um grito para além do sentido e como índice de um trabalho que articula o inarticulado e recupera uma experiência de sacralidade por meio dos objetos.
Da contingência entre a força laboral e a potência de uma obra que se instala numa fissura instável, surge o trabalho de um artista operando com o escasso e fazendo aparecer a dignidade dos objetos. Num diálogo agudo com o espaço arquitetônico que abriga a procissão de ferramentas, o que se revela é a espessura dos instrumentos que, com suas qualidades artísticas, plásticas e visuais são índice de trabalho e dramatização de uma falta que é, também, presentificação de algo que rompe uma cadeia homogênea e desierarquiza saberes, incorporando a dádiva como aquilo que é de todos e, ao mesmo tempo, de ninguém, que está no ordinário e fora dele.
Do ato propositado da negociação passa-se à doação e ao terreno do incerto, do inacessível, através de elementos intrusivos que chegam de mãos desconhecidas. À essas ferramentas juntam-se aquelas negociadas, embaralhando a lógica de acúmulo e produtividade, desfuncionalizando objetos e fazendo cintilar o território do comum – tão enigmático quanto difícil, tão raro e sempre em esquiva.
— Bianca Dias, 2016