Augusta, 2003-2017
Em 2002 mudei-me para um apartamento com visão para a rua Augusta, um ponto onde a agitação das saunas, casas de shows, striptease, dos clubes noturnos, bares, dos pequenos cortiços, do comércio miúdo e de uma diversidade inumerável de outros tantos estabelecimentos comerciais me ensinou algo sobre fluxos e tempos dotados de uma lógica interna própria. De modo natural, cheguei à ideia de que nomes próprios podiam existir como auto-apagamento. “Escrevo para apagar meu nome”: nesse mesmo ano me vi enredado pelas leituras das novelas bataillianas História do olho, Madame Edwarda e O morto. Bataille, que levaria às últimas consequências em seu projeto o desejo de apagamento de seu nome.
Foi no ano subsequente e no âmbito de um curso Desenho e Desenhos, ministrado pela artista Carmela Gross, frequentado durante a realização do meu mestrado, que dei início a Augusta. O trabalho foi desenvolvido, orientado e acompanhado por Carmela, que propunha a nós, alunos, um processo de dissecação das camadas constitutivas de nossos respectivos projetos de trabalho. Sim, naquele momento não interessava à Carmela um trabalho que tivesse se emancipado, por assim dizer. Ao contrário, interessava a ela um projeto e, nesse caso, esmiuçá-lo, “decupá-lo analiticamente” (como ela dizia), revirá-lo, desconstruí-lo em meio a uma tarefa cansativa, cheia de tateamentos, marcada por idas e vindas.
Augusta foi primeiro entrevista da janela da cozinha e do parapeito da área de serviço vazada de meu apartamento. Daquele ponto, parecia não restar muitas possibilidades de escolha quanto à “entrada” de sua vibração em minha residência, ela se impunha como um dentro paradoxalmente marcado por um fora, um trânsito entre esferas no domínio da privacidade e da publicidade.
O projeto, naquele momento, consistiu em anotar, desenhar, cartografar, registrar, esboçar, mapear, escrever os nomes e números dos estabelecimentos daquela faixa que tive diariamente ante meus olhos em folhas avulsas de papel manilha. Ainda em 2003, no final do semestre e no âmbito daquele curso, reuni o que havia sido desenvolvido e discutido calorosamente nas aulas, numa espécie de livro que trazia a relação nome x número dessa faixa da rua Augusta. Primeiro intitulei esse “livro” Augusta e, depois, Augusta Express, apresentando-o à Carmela e aos colegas participantes do curso. Infelizmente, não sei ao certo porquê, não cheguei a mostrar esse trabalho fora do curso, talvez por ter intuições fortes a respeito dele, ou porque ainda o considerasse um projeto.
Passados quatorze anos, volto a Augusta – rua, projeto, trabalho, livro, nome, personagem –, exercício de síntese dessa experiência. É claro que a ideia de nome como apagamento agora também pode ser problematizada à luz de outras questões, como a gentrificação, a especulação imobiliária, a Lei no 14.223 – Cidade Limpa, as novas feições e denominações a que o lugar seria submetido. Em 2017, a faixa que eu havia divisado da janela de meu apartamento foi novamente mapeada em meio a nomes apagados e novos nomes. Um livro de papel-embalagem construído e constituído por números e nomes impressos, com título-nome Augusta.
Thiago Honório, fevereiro de 2017.
Ficha técnica
Augusta, 2003-2017
Livro-obra publicado pela Ikrek
23,7 x 15,7 x 1,6 cm
500 exemplares enumerados
Augusta Express, 2003
Grafite, nanquim, caneta, letraset, papel milimetrado, fita autoadesiva e colagem sobre papel manilha
28 x 21 cm
foto: Edouard Fraipont
Exposições
Leituras, Biblioteca Mário de Andrade, SP, 2024
Augusta, Luisa Strina, SP, 2017
© thiago honório 2024
by estúdio garoa